Epidemiologia da
infecção pelo vírus da hepatite C no Brasil
Relatório do
Grupo de Estudo da Sociedade Brasileira de Hepatologia*
"Uma doença
sem um agente biológico identificado". Durante várias décadas esta
questão foi uma constante interrogação aos pesquisadores e estudiosos da
história natural das hepatites pós-transfusionais não A-não B.
Nos primeiros anos da década de 80, estudos experimentais em primatas e
desenvolvidos no Centro de Controle de Doenças de Atlanta (EUA), revelaram a
presença de um agente infectivo com 60nm de diâmetro, revestido de um
invólucro lipoprotéico, genoma constituído de ácido ribonucleido (ARN),
classificado inicialmente como pertencente à família Togoviridae e
transmissivel mediante sangue e hemoderivados(1). No momento da
descoberta, Daniel Bradley e colaboradores o denominaram de Agente de Forma
Tubular.
Em 1989, mediante a sucessivos
estudos de biologia molecular, Michael Houghton e colaboradores identificaram
finalmente o genoma do agente viral responsável por 80 a 90% das hepatites
pós-transfusionais não A e não B(2). Tal agente foi
denominado de "vírus da hepatite C", apresentando características
biológicas peculiares que o diferenciam dos outros agentes virais
hepatotrópicos(3).
Após a clonagem do vírus da
hepatite C (VHC) e uma seqüência de descobertos, tais como: a expressão da
proteína viral recombinante; o desenvolvimento de testes imunológicos
específicos; a análise de sua seqüência nucleotídica e o conhecimento de
sua elevada taxa de mutação, permitiram- nos conhecer em um breve espaço de
tempo informações importantíssimas sobre os principais aspectos biológicos
do VHC, o perfil epidemiológico da infecção e a história natural da doença.
Com relação aos seus aspectos
biológicos, o genoma do VHC é constituído por uma molécula de ARN em cadeia
simples e polaridade positiva, com aproximadamente 10.000 núcleotídeos(2).
A análise da seqüência
nucleotídica deste vírus revelou homologia entre dois membros da família Flaviviridae
(vírus da Febre Amarela, Dengue) e como também da família Pestiviridae(4.5).
0 genoma do VHC, como outros vírus constituídos de ARN apresenta um
notável grau de variabilidade, determinando variações de sua seqüência, e
conseqüentemente mutação genética. A análise comparativa de sua seqüência
evidenciaram a existência de pelo menos seis genótipos Virais(6, 7, 8),
subtipados como
1a/1 b, 2a/2b, 3a, 4, 5, 6, de acordo com classificação proposta por Simmonds
e colaboradores(9).
Estudos recentes revelam uma
distribuição geográfica diferenciada quanto aos subtipos do VHC(10),
predominando os subtipos 1 a e 1b nos Estados Unidos, Japão, Europa e América
latina, enquanto os subtipos 2a e 2b tem uma distribuição universal. Os
subtipos 3a e 5 são observados com maior prevalência em países da América do
Sul, e em menor grau na Europa e Estados Unidos. 0 subtipo 4 é endêmico no
Egito, Gabão e em países do Oriente Médio e o subtipo 6 predomina em doadores
de sangue, nativos de Hong Kong. Numerosos estudos sugerem que a elevada
heterogenicidade do VHC tenha implicação patogênica, terapêutica e
preventiva(11, 12, 13).
0 perfil epidemiológico da
infecção pelo VHC é tão complexo quanto história a natural da doença
ocasionada por este agente viral. Circulando no sangue em baixos títulos, o VHC
tem como principais mecanismos de transmissão o sangue infectado e seus
hemoderivados. Nos Estados Unidos da América do Norte, estudos em caráter
prospectivo e realizados pelo Instituto Nacional de Saúde(14)
revelaram um decréscimo importantíssimo da infecçâo pelo VHC após a
realização do teste para a detectação do anti-HCV, como rotina nos bancos de
sangue.
No período de 1960 a 1991, de
cada 100 indivíduos receptores de produtos sangüíneos, 5 a 15% destes
infectaram-se com o VHC. De acordo com estes estudos, no momento atual o risco
de transmissão do VHC por transfusão sangüínea é de 1:103.000, ou seja,
quase nulo. Na Itália, a incidência de hepatite C pós-transfusional por
1.000.000 de habitantes alcançou níveis de 7,5% em 1986 e de 0,4% em 1993,
revelando estes dados uma queda importantíssima na transmissão do VHC por
transfusão sangüínea(15). Recentemente, com o advento de testes
sorológicos mais sensíveis, por biologia molecular, e já em uso em
países de primeiro mundo, o risco de se infectar com VHC por transfusões de
sangue e seus hemoderivados é zero, 1:2.700.000.
Independente do risco "quase
zero" de transmissão do VHC por produtos sangüíneos, devemos considerar
que outros mecanismos de transmissão são capazes de infectar uma pessoa com
este vírus, tais como: o uso de drogas intravenosas (toxicômanos); transplante
de órgãos por parte de doadores infectados; uso de cocaína intra-nasal e
promiscuidade sexual.
Estudos recentes identificaram
que 75% dos pacientes infectados pelo VHC tinham como principal fonte de
infecção a via parenteral, seja de forma aparente, inaparente, direta ou
indireta(16). Peculiar, a transmissão do VHC por via parenteral
inaparente direta estaria provavelmente localizada no ambiente familiar, tendo
como fatores epidemiológicos a exposição e transmissão por lesões cutâneas
e de mucosa. Por outro lado, a transmissão por via parenteral inaparente
indireta poderia estar relacionada com o contacto íntimo prolongado ou através
da contaminação de instrumental e utensílios contaminados com sangue
infectado. Porém, até o presente momento, não existem evidências de
transmissão familiar ou sexual, quando os contactos específicos do caso índex
foram testados(17).
Com relação à transmissão
vertical (materno-fetal) e de acordo com Ohto e colaboradores(18),
esta ocorreria em apenas 5,65% dos casos e estaria relacionada com os altos
títulos do HCV-RNA circulante materno (1.000.000 de genoma/ml).
A infecção pelo VHC tem uma
distribuição universal e as suas altas taxas de prevalência estão
diretamente relacionadas com os chamados grupos de riscos (hemofílicos,
pacientes hemodialisados, receptores de múltiplas transfusões de sangue,
recém-nascidos de mães portadoras, toxicômanos). Nestes, dois grupos chamam a
atenção, os hemofilicos e pacientes hemodialisados. Nos hemofilicos, a
prevalência de infecção pelo VHC varia de 53% a 89% em vários países do
mundo(19) e no Brasil observam-se índices de 87,3%(20),
enquanto nos pacientes hemodialisados verificamos percentuais que variam de
19,0% a 47,2%(21, 22, 23). Finalmente, em pacientes com hepatite
crônica pós-transfusional não A e não B, a prevalência deste vírus
alcança percentuais alarmantes, como o observado em determinadas áreas
geográficas do mundo, Espanha 85,0%, Alemanha 70% e Egito 82%(21, 24, 25).
Na população em geral, os
índices de prevalência variam de região para região. Na maioria dos países
da Europa Ocidental e na América do Norte, a prevalência varia de 0,1% a 2,0%,
enquanto em determinadas áreas do Mediterrâneo este percentual alcança 2,9%
da população estudada(14, 15, 26). As maiores taxas de prevalência
são observadas na África, com percentuais que variam de 6,0% a 12,5%(27).
Estudos dirigidos quanto à prevalência de infecção pelo VHC em doadores
sangüíneos revelam índices menores em países da Europa Ocidental, variando
de 0,3% a 0,8% e outros bastante significativos em determinadas áreas da Ásia
e África, 2,0% e 13,6%, respectivamente. Na América do Norte, a taxa média de
prevalência entre os seus doadores sangüíneos está em torno de 0,16%(17).
A prevalência de infecção pelo VHC na América do Sul é estimada por estudos
realizados em amostras de pré-doadores de sangue.
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